domingo, 13 de janeiro de 2008

O Sport e os "pombos sem asas"


É melhor esclarecer desde já que não torço por time algum, embora já tenha ido a um jogo por pura curiosidade com meu amigo Maurício (doido, fanático pelo Sport). É verdade que nem vi quando o Grêmio fez gol, mas tudo bem. Tudo esclarecido, não quero falar de futebol, nem de Sport, nem de Grêmio (foi só uma estratégia de marketing, hehehe), quero falar dos "pombos sem asas". Estou numa eterna faxina de papéis há uma semana e claro, me deparei com muitas das minhas anotações antigas e com a minha dissertação. Defendi-a em 2004 e se tratou de uma análise antropológica sobre a complexidade ambiental de dois assentamentos urbanos de Recife: Caranguejo e Campo Tabaiares. É somente aí que entra o Sport, pois os assentamentos se localizam ali por detrás do clube na Ilha Retiro. De acordo com alguns dados coletados, a ocupação foi iniciada em 1910 e em 2000 a população foi contabilizada em 3443 pessoas. É uma realidade muito triste, contextualizada por desemprego, baixa escolaridade, falta de perspectiva para @s jovens, saneamento básico nenhum e muitas palafitas. Tudo isso contrasta com uma reserva ambiental protegida por lei, denominada ZEPA (Zona Especial de Proteção Ambiental), que fica por trás, depois de um “bracinho” do rio Capibaribe e que se pode chegar ao Coque de barco. Conheci homens e mulheres muito fortes, lideranças comunitárias ou não, que lutam bravamente para resistir a tantas privações. Neta, como a chamavam, era a presidente da associação da comunidade quando num ato de protesto e desespero entrou no canal da comunidade para limpá-lo e faleceu alguns dias depois de leptospirose. Quando a entrevistei, ela disse que morava da comunidade desde que nasceu (tinha 47 anos) e que gostava do local em que morava porque “é perto de tudo (...) se quiser ir para cidade, se a gente não tem nem custo, a gente pode ir a pé”. Era o que a maioria das pessoas que foram entrevistadas ressaltavam: a proximidade de mercados, hospitais, dos empregos (quando os tinham), enfim, a possibilidade de não ter que pagar passagem do transporte (que inclusive, se eu não me engano, está aumentando esta segunda (14). Quando eu a questionei sobre o que ela melhoraria na comunidade, se ela pudesse, ela respondeu: “Queria o melhoramento das habitação das casas né, e do lugar, calçamento, drenagem dos esgotos (...) eu queria conseguir isso para os pessoal das palafitas, é esse o meu sonho que eu quero”. Deixo aqui minha homenagem póstuma a Neta. Mexer nessas questões não são fáceis para mim. Durante dois anos aqueles assentamentos foram “meus” “objetos” de estudo. Fui lá ano passado e as coisas estavam do mesmo jeito. É desalentador. Dá vontade de parar de escrever, de fugir da realidade, mas não há como. Quero deixar minha homenagem escrita também a Nice, outra grande guerreira, uma das integrantes da associação dos moradores. Ela perdeu mais um filho ano passado, foi o segundo a ser assassinado antes dos 20, e eu ainda não tive coragem de, ao menos, ligar para ela. Estou tentando ter forças. Agora me esforço por terminar o que comecei. Quando dei o título à minha dissertação, um professor muito querido disse: “é muita ousadia colocar merda na capa da dissertação”, ele sabia, para minha surpresa, o que significava “pombos sem asas”. Essa expressão é dita pelos moradores das palafitas que, sem acesso a saneamento básico, fazem suas necessidades em sacos plásticos e arremessam na maré. Deixo abaixo algo que escrevi pensando naquela realidade:

Quem diz que não podemos voar?
Olhamos para o céu e os pombos voam
E se não afundamos na maré como caranguejos
Voamos tal qual pombos sem asas
Arremessados por mãos alheias
Que metamorfoseiam as asas frágeis, feias, doentes
Quase invisíveis
Em sonhos possíveis
Ressurgindo da lama fétida
Em forma de vida-morte-vida
Em asas exuberantes
Nos seres humanos que se mantêm respirando
Todo dia respirando.

6 comentários:

jeffersongoes disse...

Sheila, seu texto nos faz lembrar de como há muito por que se lutar neste país. Ele merece ser mais divulgado pela internet.
Fico feliz que você tenha decidido falar a respeito daquela comunidade e que tenha prestado uma homenagem, principalmete, àquelas duas mulheres.
Um beijo!!

Anônimo disse...

É quem disse que falar da realidade é fácil?! Principalmente a das comunidades, mas é preciso, sempre é! Você um dia escutou a elas e escreveu, por mais que nessa comunidade nada tenha mudado. Pode ter certeza que para aquelas mulheres e homens ter falado foi de grande importância!
Continue nos graciando com seu olhar sobre a realidade!
Beijos

Unknown disse...

Shelinha,
tua dissertação é uma das coisas mas delíciosas que já li... bem realizada e aprofundada, com uma visão critica e real da condição de um povo que mesmo morando proxímo a uma área elitizada, vive na "merda", sem direitos, ou melhor, com os seus direitos negados.
um grande beijo,

Sheila Bezerra disse...

Jeff, em relação à divulgar na internet fique à vontade para divulgar em sua lista, seria ótimo, em princípio. Obrigada pelo seu comentário. Tu é lindo! heheheh

Sheila Bezerra disse...

Manu, tu não vale, hehehe...tô brincando. Obrigada pelas palavras de estímulo. Abraço grande! Sheila.

Sheila Bezerra disse...

Sirley, muito bom saber que você a leu. Hoje tenho muitas críticas sobre ela, mas sei que sempre será assim... a gente faz, depois pensa, desfaz e por aí vai. Muito obrigada pelo seu comentário, ele me deixou emocionada! Abraço grande, Sheila.