sexta-feira, 11 de janeiro de 2008

Entre lenços, papéis e dores - Um ensaio memorialista sobre as implicações da violência na saúde das mulheres




“E quando ofereci lenços, ela me perguntou, entre o choro e o riso, se aquilo acontecia com outras mulheres.” Se tivesse chegado a escrever um diário de campo, este bem que poderia ser uma fragmento de minhas memórias quando em 1999, tive a oportunidade de, como pesquisadora, entrar em contato com a história de vida das mulheres e as implicações da violência em suas saúdes.
Dentre as orientações que obtivemos (enquanto pesquisadoras) para lidar com a situação nada confortável de fazer a mulher relembrar momentos, possivelmente terríveis de suas vidas, estava aquele de prestar solidariedade e ampará-la (ou pelo menos suas lágrimas), através dos lenços de papel que carregávamos entre questionários, lápis, pranchetas e guias de apoio no qual constavam referências com endereços e telefones, tanto de instâncias jurídicas e delegacias, quanto de serviços de saúde.
A violência, e aqui trato da violência doméstica em específico, certamente não pode ser configurada como uma doença em si, contudo produz doenças e outras enfermidades, além de que as perpetua em contextos diversos, geralmente caracterizados por relações desiguais de poder. Também a forma como a violência ou as violências podem se expressar são variadas, podendo estar exteriorizadas no corpo físico através da violência física (no caso das mulheres se coaduna de forma corriqueira à violência sexual), mas também e muitas vezes de forma não visível, através da violência psicológica, quando mulheres são submetidas a processos intensos de sofrimento, que provocam tendências à depressão e mesmo ao suicídio.
É inevitável, quando falamos de saúde lidarmos também com a sua ausência, e ainda mais inevitável, dentro do contexto de mundo no qual estamos todas e todos inseridos/as, tratar dos aspectos sócio-culturais que, entre outras coisas, compõem o perfil de integralidade da saúde e por consequência sua complexidade. Dessa forma, o que teria a ver uma mulher com um braço quebrado, e/ou com um olho roxo e os serviços de saúde, por exemplo!?
A relação entre o contraponto da saúde - a doença - e a violência só há pouco tem recebido a atenção que merece, inclusive porque ainda hoje há relutâncias em se reconhecer a violência como um grave problema de saúde pública. Uma vez que o exercício de cruzamento de tais aspectos passaram a ser feitos, ficaram evidenciados problemas, principalmente aqueles relativos ao preparo, ou no caso, despreparo dos serviços de saúde para lidar com tal realidade.
Um exemplo do que acabo de dizer é que muitas vezes a causa (verdadeira) de um braço quebrado ou de um olho roxo não é notificada ou é subnotificada, o que contribui de forma devastadora para a ineficácia ou resolução do problema, bem como expressa uma desqualificação do serviço e mais complexamente, uma ausência de políticas integradas para o enfrentamento dessa violência.
Viajando na Zona da Mata de Pernambuco, Nordeste do Brasil, tive contato não só com a mulher que aceitou o lenço que ofereci, mas também com muitas outras mulheres, cujas realidades se diferenciavam e paradoxalmente se aproximavam, não só pelas histórias de violência vividas, mas também e em muitos casos, por ocasião da situação de pobreza em que estavam inseridas.
Nem todas as mulheres com quem conversei naquele ano, durante seis meses, choraram. Muitas “aprenderam” a engolir o choro mesmo diante do fato de ter tentado suicídio nas últimas quatro semanas e/ou ter seqüelas físicas irreversíveis. Algumas “aprenderam” a somatizar suas dores na insônia, na depressão e em outros sintomas que, por sua vez, diante de um despreparo institucional, certamente correm o risco de passar despercebidos inclusive por quem teoricamente deveria estar preparado para questionar as evidências no sentido de um diagnóstico, tratando do problema dado, mas também problematizando suas causas.
Todas as mulheres estão vulneráveis à violência de gênero, contudo aquelas que mais estão, não por coincidência, são também desprovidas de estruturas educacionais e econômicas, e essas são também, em geral, aquelas que mais recorrem aos serviços públicos de saúde.
Algumas, por força da necessidade, logo após terem sido gravemente agredidas, recorreram aos serviços de saúde para os primeiros socorros, mas em seguida, sem ter seu problema identificado, sem apoio para o enfrentamento de sua situação, voltam para casa ou para o espaço que, em geral, é também freqüentado por seu agressor (aqui o gênero da palavra se coloca propositadamente no masculino pois de acordo com pesquisas e estudos em geral, são eles os principais agressores e em geral também, são homens que mantêm relações muito próximas à mulher agredida, o que configura a violência doméstica).
Se não há uma escuta “sensibilizada” dos/das profissionais, se não há uma notificação compulsória dos casos e encaminhamento para outros órgãos competentes do Estado, se a legislação não prevê um atendimento “especial” para o atendimento das mulheres vítimas de violência, entre outras coisas, os dados serão perdidos, a violência sofrida pelas mulheres tenderão a ser encarados como fenômenos individuais, as pesquisas e levantamentos ficarão defasados, o Estado não terá domínio mínimo sobre o que, de fato, acontece na sociedade e por sua vez não implementará políticas públicas eficazes de prevenção e combate à violência, e o ciclo se fechará, mais uma vez, com vitimizações, sofrimentos, doenças e/ou agravos associados à violência, demandando por sua vez, os serviços de saúde e assim por diante.
De acordo com tudo que me predispus colocar neste ensaio, tanto a partir de minhas memórias de campo, quanto das leituras que pude fazer acerca do tema, proporia que os/as profissionais da saúde pudessem estar sensibilizados/as e, mais que isso, suficientemente envolvidos com todo o pressuposto ético que o problema requer, de forma a investigar não apenas as patologias já “institucionalizadas”, mas também aquelas muitas vezes negligenciadas pelos processos tradicionais do atendimento médico-hospitalar.
Para tanto, certamente, são necessários tanto a adequação dos prontuários e outros instrumentos de registro de atendimento, quanto processos de educação/treinamento em que tais profissionais, não só tenham a possibilidade de tornar o problema da violência visível dentro da própria instituição, como também possam proporcionar à mulher e à sua família, um cuidado integral e especializado, caracterizado tanto pelo exercício da escuta (o que transmitiria a confiança necessária para esta mulher), quanto pela possibilidade de encaminhá-la em seguida para o serviço mais adequado (delegacias, centros de referência, casas abrigo, entre outros) com o importante domínio, certamente, de tal rede de serviços. É assim que concluo este ensaio. Entre lenços, papéis e dores, acontecem as vidas e as estatísticas. A questão é que entre a vida e as estatísticas, ou entre o que é passível de observação e o registro propriamente dito (estatística ou não) há uma pessoa, há seus pensamentos, sua saúde, a ausência da mesma, a imensidão de possibilidades e os caminhos a serem percorridos. Cabe a quem tem a possibilidade do conhecimento e da sensibilidade, mas também da ética a que não se pode prescindir, a abertura de tais caminhos ou, ao menos, a sinalização dos mesmos.

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