terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

“Minha mãe é hetero e eu a aceito”


“Minha mãe é hetero e eu a aceito” - Quantas idéias podem expressar essa frase retirada de um cartaz de uma militante do movimento de lésbicas, fotografada (por Ferreira e Bonan, 2005) com sua tez irreverente, ironicamente sabida de sua provocação?!
Provocação? Poderia ela mesma indagar, ainda ironicamente, acrescentando que não poderia tal frase “provocar”, uma vez que prega a tolerância ao que lhe é diferente.
Quem segura o cartaz? Uma mulher e lésbica. Essas, por si sós, já seriam características suficientes para justificar o que seria tal provocação (num mundo cujo valor moral hegemônico é o da heterossexualidade), contudo, ainda por cima, há o conteúdo do cartaz, este que fala ao plano público, da condição necessária e da possibilidade de existir tolerância ao que se considera diferente, partindo das ações individuais e, inclusive, do plano privado, quando cita a “mãe” (que por assim dizer, seria uma outra grande provocação), e devolve, tal qual um espelho, a possibilidade de qualquer pessoa ou instituição, dizer o mesmo, sem antes cair em contradição.
A figura materna em nossa sociedade é sinônimo de santidade referendada num imaginário de caráter patriarcal, cuja mãe de referência é Maria, mulher dessexualizada, que concebeu seu filho pela intervenção do espírito santo.
As ironias tanto do sujeito que fala, quanto do que é falado, estão em que a provocação se apresenta no “desmantelamento” dos valores que a curta frase apresenta, primeiro, por convidar a repensar quais são os parâmetros que utilizamos para definir o “diferente” e, segundo, por questionar qual a nossa capacidade de tolerância, de relativização de nossos julgamentos e da responsabilidade que atribuímos (ou não) aos mesmos.
Também questiona se estamos realmente preparados a abrir mão, desconstruir ou ao menos repensar, nossas “bengalas”, histórica, social e culturalmente instituídas e aceitas como verdadeiras (em sua maioria), bem como por ainda fazer refletir a quem atribuímos o poder de expressar idéias, a quem atribuímos dignidade, a quem legitimamos a autonomia e, por assim dizer, a cidadania, condição inalienável do sujeito político.
Por que resgatei essa passagem de um dos meus trabalhos acadêmicos? Porque “vivemos num mundo onde precisamos nos esconder para amar...enquanto a violência é praticada em plena luz do dia”, já dizia John Lennon. Há poucos meses, um rapaz diferente – estrangeiro, estrábico, de vestes surradas, “devorador” de livros, – tirou sua roupa, ficou nu em pêlo, e se jogou das alturas do CFCH. Manchete do jornal no outro dia: “estudante homossexual se suicida”!
Nas comunidades do orkut, várias mensagens de pessoas de sua convivência na adolescência dizendo o quanto o rapaz sofria discriminação por ser diferente, por não ter roupa nova para formatura, por ter suas passagens de transporte contadas, enfim, suas privações expostas e nenhuma delas estampadas na manchete. Meu companheiro o conhecia e nunca soube, em suas longas conversas, que o rapaz era homossexual, e se soubesse jamais veria problema nisso. A questão para nós, desde o início foi: por que a manchete anunciou seu suicídio a partir da sua pretensa orientação sexual? A resposta é: porque tudo se torna mais fácil.
As pessoas querem notícia curta e pouco trabalho para pensar. Cansei-me de ver, nas minhas idas e vindas com as notícias de homicídios de mulheres manchetes e reportagens do tipo: “mulheres envolvidas no tráfico assassinadas”, “mulher com tatuagens no corpo estuprada e morta”, “mulher homossexual assassinada pelo vizinho”. Fica mais fácil para quem lê, fica mais fácil para a infinidade de jornalistas imbecis que nós temos (claro que há exceções), mais fácil para os órgãos de Defesa Social, mais fácil para quem comete o crime. Reafirmar estereótipos é sempre mais fácil. Difícil é mudar o mundo, mudar idéias, mudar formas preconceituosas de pensar, mudar...transformar.
Por isso trouxe o cartaz: “minha mãe é hetero e eu aceito”. Ele é, para mim, a pura representação dessa tentativa de dizer ao mundo que outras formas de enxergar e estar nele são possíveis, inclusive, perceber as violências que estão no nosso entorno e questioná-las ao ponto de não vê-las mais como banais.


Se quiserem saber e ver mais imagens do livro mulheres e movimentos acessem: http://www.mulheresemovimentos.com.br/

2 comentários:

Unknown disse...

N�o suporto toda essa hipocresia da sociedade que voc� apresentou t�o bem no texto. Acredito que n�o s� podemos como devemos transformar a sociedade e isso deve come�ar por n�s mesmos. � preciso de uma nova �tica para uma nova sociedade onde todas as diferen�as sejam aceitas por serem diferentes e n�o pela tentativa de torn�-las id�nticas. Obrigado por me proporcionar refletir mais sobre mim mesmo. Bj�o

Sheila Bezerra disse...

Valeu pelo comentário tão estimulante meu amigo! Abraço grande, Sheila.